segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Carne.


Carne.

Matéria prima do êxtase, ação, suor, vida, sonho. Produto e produtora de si. Forte como uma rocha, sensível como uma flor, difícil de entender, rica, complexa, ao mesmo tempo bela, simples, suave, delicada. Enrijece, enruga, apodrece, inflama, congela, muda. Bruta, crua, como ferro, engrenagem, tijolo, peça de um quebra-cabeça vivo intenso, profundo e em constante processo de transformação. Cimento do homem, logo, é divina, cinza, vermelha, abastecida pelo sangue que hidrata sua existência rústica. Verdadeira essência humana, material, concreta.

O homem é a carne.

Para além do olho, existe o olhar
Para além do cérebro, existe o pensar
Para além do coração, existe o amar
Para além da carne, existe o viver.

A alma é um verbo.

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

O Urso da Mendiga.


A broa rançosa de praça
Desfaz a fome da tarde
E sob o sol do meio dia
Fede o bicho morto sem cova
Podre
Sem morada
O céu, que abre as desgraças
Desqualifica o oficio
De defesa da pátria
Dos pais arrependidos
Da porra desperdiçada
Do carrinho necessário
Para viver uma pobre jornada
De bicho morto
Coração morto
Ave morta
E visto da sombra da árvore
A mendiga conduz seu urso sujo
Pelo caminho do afeto ilusório
Para esquecer que há
Muito além dali
Tudo aquilo que queríamos não ver
E vemos.

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

A bostinha da amizade.


A estrada estrelar surpreendeu todos os automóveis ferozes que fugiam pela fresta da porta escura aberta para as noites infindáveis com cheiro de peixe e gosto de terra. Na noite escura de vento ardido e sons duvidosos havia, nas direções do progresso da cidade, um cachorro vadio que lambia suas próprias bicheiras, como se fosse desesperador viver um minuto sem praticar uma ação suicida nas praças dos enclausurados. E lá, muito além da luz avermelhada da lua estranha que não temos tanta certeza se vimos, eu vi um homem, mas ele não era como esses homens comuns, pobres e mortos que a gente sempre vê por aí, ele era - e eu sei que era mesmo - um homem que era um santo e que tinha sobre a carne do seu coração a enorme vila habitada pelas almas livres e alimentadas pelos brilhos da vontade satisfeita no simples querer e, como quem quer mesmo, dizia para si mesmo, convicto e espirituoso: eu quero!
Eram já altas horas quando seu corpo se abriu para o espaço, quando seus olhos sinistros de louco moleque maligno gritou um riso engraçado que dizia muito mais do que um forte golpe conta o rosto frio dos cristãos envenenados de ódio e modernidade, desse juízo eletrônico bestial do sangue doente dos bichos vencidos pelo baygon assassino da nossa era selvagem.
O som que zunia no meu pé d'ouvido era um vento forte que trazia na minha cara o bafo de Fortaleza, e isso não comprometia a alegria de ver voar no céu os anjos vadios ziguezagueando embriagado por essa noite preciosa - o corpo aberto! - e vi muito além das ondas revoltas daquilo que entendi como ordem universal uma estrela pousar por trás da jangada, era algo estranho e maligno na sua fisionomia inaceitável de nossos pais, há tempos vencidos pelo próprio tempo na sua ação transformadora e desordenadora das leis vagas dos dias seguidos. O homem, que era um santo, que era um anjo, e era, também, um bicho que me encarava por trás daquela escuridão sinistra, mas contagiada de humor e patifaria dos que debocham do comum, fazia daquilo tudo uma cena trágica de novela que rasgava os olhos dos brasileiros no horário nobre, mas era só eu ali, e não a família brasileira, era somente eu, sem os que mereciam ver tudo aquilo com significações diferentes, vendo o que devia ser visto por todos, vendo a estrela que deveria pousar, leve como uma fada encantada, na ponta do nariz dos nossos inimigos, era preciso jogar aquela estrela excêntrica sobre a casa de nossos professores e espalhar sua luz nas ruas de toda essa gente estúpida que tanto vemos, numa tentativa de fazer tudo ficar melhor e transformar o incomum em comum.
Os homens olham para o asfalto negro em busca de estrelas, as ruas se destroem em peso e violência dos loucos responsáveis, dos loucos atarefados, atrasados, encarregados e blábláblá desse cotidiano industrial. Fortaleza morre, os homens adoecem, os rios apodrecem e tudo isso é encarado como algo natural, enquanto a estrela cadente que viaja por universos de nossas mentes e pousa secretamente por trás da jangada noturna de nosso oceano imaginário, navegado pelo toque de nosso raciocínio voraz a atingir a velocidade da luz é tido como o que há de mais odioso no mundo.
O mundo é estranho, e a ordem está na perspectiva do reflexo oposto do espelho.

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Os uivos de cada geração (para meu irmão).



"Eu vi as melhores mentes da minha geração destruídas pela loucura", diz o poeta. Na minha época isso se deu não pela loucura da fuga da realidade, da busca por prazeres fugazes ou da beleza que vem da vida nas ruas. Muito pelo contrário, era essa loucura que sustentava essa geração. Eram as idéias, as músicas, as experiências de verdadeiros vagabundos iluminados que riam dos hipócritas nas suas salas de aulas, nas suas casas, nos seus bairros, no seu país, e que levavam a crítica como elemento fundamental, que os moviam. A loucura que destruiu suas mentes foi a da própria realidade, do dia-a-dia, da correria, do mata ou morre. A loucura do trabalho, das relações duras com a família, das fofocas dos vizinhos, dos estudos, da busca incessante pela concretização de projetos de vida que não foram feitos por você, e sim para você. Levavam uma vida obscena para muitos, mas que, para mim, foi ao mesmo tempo poética, doente, livre, destrutiva e exemplar. 

Não eram suas vidas obscenas só porque não ligavam para os clichês da vida de concursados, funcionários públicos, profissionais liberais e afins, eram vidas experimentadas no calor das ruas e do som. Porém, o turbilhão concreto do mundo real os alcançou no olimpo que eles vivenciavam, sustentado pelo espírito das calçadas, das ondas da praia, das rodas nos shows de rock e na consciência inconsciente do mundo pútrido em que viviam e que os dividiu, e os forçou a se tornarem pessoas que respondem à patrões, que buscam avançar nas suas carreiras, que perseguem diplomas, cargos de engrenagem na máquina social caótica, burguesa, insensível e feia. Não sei se fizeram isso por opção, mas sei que as circunstâncias da vida lançaram um conjunto de cartas para cada um deles e cada um fez a sua jogada como pôde. Alguns receberam uma ótima mão e fizeram péssimas escolhas, jogadas imbecis com intenção de tentar permanecer dentro de um jogo sem saber que ele já tinha acabado. Outros receberam cartas que não lhes davam a menor perspectiva de um bom resultado, mas, contando com certa habilidade e sorte conseguiram se sair bem. E um deles recebeu cartas completamente inesperadas, mas que estavam no baralho da vida que todos levavam. Cartas que, para muitos, poderiam ser as piores possíveis, que acabariam com qualquer jogo, mas, esse único teve a capacidade de tornar aquilo uma vitória inconteste. Calou a boca de muitos que não acreditavam na sua vitória (e muitos que desejavam o seu fracasso), conseguindo um prêmio diferente de tudo que eu já pude conhecer. O maior prêmio da vida de um homem, e todos que estiveram na mesa de jogo com ele reconheceram isso. Mesmo após isso tudo, a vida lhe continuou dando cartas difíceis mas ele sempre teve coragem de fazer seu jogo dar certo. Mesmo cambaleante, arriscou jogadas inimagináveis para mentes mais fracas (como a minha) e conseguiu se sair por cima. 

Acredito que ele e muitos dos que fizeram parte de sua geração são pessoas diferentes, por conta de tudo que eu pude ver. As forças que nos puxam para determinados rumos da vida fez com que eles se separassem, então, logo acabaram-se as bandas, as saídas, as brigas, as casas de praia, as festas, as calçadas, e, ao mesmo tempo, terminaram as discussões familiares, os problemas escolares/acadêmicos, as fofocas dos vizinhos criativos e os conflitos internos que eu sei que cada um teve nesse período. Mas de uma coisa tenho certeza, eles nunca perderam a fagulha da insanidade que os levou pelos caminhos que seguiram na juventude. Esta foi uma geração que uivou muito alto em meus ouvidos e que eu não tive como não ouvir. Agora, esse uivo ecoa em minha alma e eu tento aquietá-lo no meu viver. É um uivo que refletiu na minha geração, nos meus pares, e fez com que nós teimássemos vivenciar coisas incríveis, só de birra com o passado. Cada um de nós tentou viver à altura desses que vieram antes, contamos as suas histórias num misto de admiração e desprezo e sonhamos em ter na nossa vida experiências tão intensas quanto eles. Pensávamos se um dia a geração seguinte contaria histórias sobre nós, ou se passaríamos em branco. Até hoje pensamos isso. Eles foram verdadeiros pinos quadrados que acabaram tendo que forçar encaixe nos buracos redondos da vida, como todos nós eventualmente teremos que fazer antes da morte, mas, tenho a certeza de que esse encaixe não mudou plenamente as suas formas. Ainda há loucura neles, assim como sempre haverão os uivos das próximas gerações.